Verbo de ligação


Tia Italia
tia italia e enza

Tia Italia e sua filha Vincenza

Com que delicadeza nos recebeu naquela tarde em seu aconchegante chalé, na chácara. Houve carinho, café e guloseimas que ela fez especialmente pra nós. Que horas agradáveis, proveitosas, plenas de acolhimento mútuo e presença. Nenhum gesto em vão.

É que as sobrinhas que moramos tão longe sabíamos que poderia ser o último encontro com a tia e queríamos abraçá-la todo o tempo, com olhares, afagos e palavras.

Abatida, mas ainda amável e jovial, ela nos mostrou que seguia em frente. É verdade que, ao deparar com a doença, detestou-a e rebelou-se, como é de se esperar. Mas em algum momento compreendeu que a sua única chance de triunfo seria compreender o que a enfermidade tinha para lhe contar. Então, ergueu-se para além do temor e se manteve de olhos e ouvidos abertos.

Suportou mal-estares, dores, ambulatórios, químicas, picadas… E deixou que viessem à tona velhas mágoas: sentiu-as, falou sobre elas, tocou em suas próprias feridas, para poder purgá-las.

Até que se esvaziou. E aceitou a sua história. E pôde contemplar seu entorno com novos olhos. E ganhou uma vida mais leve e brilhante. E amou mais do que nunca filhos, netos, parentes, amigos, animais e seu grande quintal. Pudemos comprovar isso naquela tarde: ela parecia tomada por uma aura de serenidade perante o mundo e gentileza para com os semelhantes.

Então, quase um ano e meio depois, recebi a notícia da sua partida e deixei que lágrimas quentes corressem o meu rosto. Quando meu afeto escreveu uma cartinha para ela.

“Tia querida, toda gratidão por enfeitar as nossas vidas com a sua beleza. Por ter carregado esse nome lindo, que sempre soou como música ancestral para nós. Por sua doce voz, falando-nos com calma e humor. Por ter sido generosa com as nossas brincadeiras de meninas, e por depois ter sido paciente com as chatices da nossa adolescência. Por ter me dado essa prima tão amada e por me hospedar calorosamente em seu ninho tantas vezes. Ah, e por ter feito aquele doce que eu via nas revistas e babava de vontade de experimentar: os tais papos de anjo, lindos, fofinhos e deliciosos…

E, parabéns, tia, por ter ousado nos momentos em que considerou necessário, por ter tido a coragem de mudar, de experimentar o novo, de buscar a felicidade, de traçar outros rumos, mais satisfatórios para a sua vida.

Com ternura e saudade, está gravado o seu nome no meu coração: Italia Laureante.”

Onides Bonaccorsi Queiroz

tia italia

Italia Laureante (1941-2018)



O que terá sido feito de Ana Paula?

Ela era a primeira a vir me receber no encontro semanal, na porta da sala de aula. Sorrindo, abraçava minha cintura e aninhava a cabeça em meu ventre. Depois pedia beijo. Eu me ajoelhava e atendia a doce demanda, coração com coração.

Na roda de história, sempre queria se sentar ao meu lado. Acompanhava, atenta, cada detalhe da narrativa. Mostrava uma inteligência pura e vibrante a amável Ana Paula – assim a chamarei aqui.

Mas o tempo foi passando e surgiram modificações em seu jeito de ser. Foi se tornando silenciosa, depois arredia. Não olhava mais nos olhos. Quando eu lhe dirigia a palavra, nem de longe tinha a mesma receptividade de antes. E tive notícia de que, com frequência, passara a agredir os colegas. Ao mesmo tempo, começou a engordar.

Ficou claro que algo não ia bem em sua vida. O que a importunava? Procurei a psicóloga da instituição, profissional sensível e competente. Relatei as alterações observadas e pedi que investigasse.

Dias depois, ela me chamou. E fez o lamentável relato. Conversado com a mãe, descobriu que a mulher era sistematicamente espancada pelo marido na presença da filha. Até havia tentado, várias vezes, mas não conseguia se separar do homem. Embora tivesse autonomia financeira, sentia-se afetivamente dependente dele.

Enquanto isso, pobre criança! Sofria profundamente, ao testemunhar a pessoa que ela mais amava sendo agredida por aquela outra em quem muito deveria poder confiar. A essa altura dos fatos, Ana Paula já havia quase dobrado de peso.

Embora soubesse que a dinâmica familiar estava estreitamente relacionada com a transformação física, eu ainda não entendia exatamente como. Mas, certa manhã, emergi do sono com a resposta.

Para protegê-la dos terríveis golpes que o pai desferia contra a mãe, o psiquismo da menina determinou que seu corpo acumulasse uma camada de gordura tão espessa quanto o medo, a revolta e a tristeza que ela sentia. Era um recurso da existência para amortecer a dor e proteger sua vida.

Lá se vão os anos e eu penso nela. O que terá sido feito de ti, Ana Paula? Ah, minha querida, a noite da humanidade é mesmo longa e escura.

Onides Bonaccorsi Queiroz

índia-anjo

(Ilustração: internet)