Verbo de ligação


cheia de graça
08/03/2010, 19:20
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É uma bênção ter uma janela aberta voltada para o nascente, pensou.

O sol ia preenchendo de amarelo o quarto aquela manhã. Soprava uma brisa cálida e suave.

Ela se levantara ainda no escuro para receber o dia. Muito trabalho a aguardava e se sentia particularmente disposta. Ordenava o quarto com paciência.

Depois, as preces. Por esse hábito, os amigos lhe diziam “disciplinada”, os desafetos murmuravam “metódica”. Todos equivocados. Não era o dever ou a compulsão que a impulsionava. Mas o prazer. Nutria singular apreço por esse diário momento todo seu, todo direito, todo prêmio. Na intimidade da própria companhia, ora rezava, ora refletia, ora calava. Ora pedia, ora aceitava, ora agradecia. Diante do altar, orava.

Em cima do móvel, o pequeno relicário com que uma amiga lhe presenteara, delicada peça criada por artesã do sul. Dentro da moldura, morava a “foto” de Jesus, como diziam as crianças que entravam ali.

Entre os dedos, o terço. Repetia, repetia. São, ainda, palavras em minha boca – sabia. Mas, tenho fé, um dia isto me tomará toda e será a minha verdade. Ave Maria, cheia de graça…

Falava e buscava manter a atenção em cada palavra; com frequência o pensamento lhe escapava, ia longe, envolvia-se em tolices, mas ela conhecia o pastoreio e não se cansava, ia sempre resgatá-lo. Questão de tempo e determinação, cedo ou tarde seria dominado pela consciência.

Sem avisos, algumas vezes a introspecção lhe abria uma fenda e ela passava. Por dentro, via o avesso de tudo, que tudo explicava. E os arremates eram tão perfeitos que realizava: avesso, nada! Quem sabe o avesso é o outro lado, o que parece direito? Mas, agora que estou aqui e tudo se integra, o que quer dizer “outro”?

Assim, mais uma vez, deu-se a oportunidade de abrir a porta entre os mundos. Jogou fora toda a pressa que captura o cotidiano entre os dentes, arrastou a cadeira e se sentou. Quis ficar bem caladinha, a sós com uma força que sentia crescer dentro de si e que quase sempre lhe causava pavor. “Não hoje”, declarou. Respirava, confiante: “hoje não vou fugir”. E, silente, clamou por ajuda.

Esbarrou os olhos nos olhos do Cristo da imagem. Parecia um homem de grandes dimensões físicas, tórax largo e alto. Tinha a pele clara e os cabelos castanho-acobreados caíam-lhe sobre os ombros. As sobrancelhas grossas e bem torneadas salientavam olhos cor-de-mel cuja expressão era excepcionalmente franca e amorosa. Nos lábios o esboço de um sorriso de júbilo e promessas, os braços abertos em consagração e acolhimento. E, sobre os ombros, o manto vermelho, a adornar sua postura régia e seu coração de fogo.

“Que homem!”, constatou, e seu corpo estremeceu… De desejo. E ela viu que O quisera e num átimo negou, disfarçou e em pensamento chegou a murmurar, bem baixinho: “tomara que Ele não tenha percebido”.

A Presença, então, dirigiu-lhe a palavra:

– Por que te escondes?

Então ela se viu apanhada no flagrante. E sentiu vergonha, muita. Mentir pra Ele? Não lhe restou outra que confessar.

– Desculpa, me perdoa. Não deveria ter pensado isso. Uma vulgaridade…

– Eu não te julgo.

– Como? Não pensas mal de mim, com isto?

– Qual é o teu pecado?

Avaliou. Até que a ideia ganhou corpo.

– Tomar Deus como homem.

– Eu também sou homem. Qual é o teu pecado?

Ela se encheu de coragem e enfim respondeu:

– Quis fazer amor contigo.

– E achas que me ofendes com teu desejo por mim?

Então ela, que não via saída para a situação, desesperou-se e entregou, chorando:

– Acho.

– Por quê?

– É o corpo. É sexo. É finito.

– A matéria é finita. Mas o êxtase é infinito. Pertence ao Eterno. E quem te deu o corpo? E quem te deu o desejo? E quem te deu o sexo?

O que lhe ia de sensato respondeu:

– Deus. Só pode ser Deus. Quem mais haveria de dar se só há Deus?

– Sim. E eu sou Deus. Quando acreditarás que eu te amo?

Então ela se deu conta que, até aquele momento, sobre o amor só registrara conceitos, que com eles construíra uma ficção sobre o amor e que se movera dentro da ficção como se fosse verdade. Aí enfim compreendeu a diferença do que Ele lhe oferecia. Uma aceitação sem precedentes. Uma ternura revelou-se como flecha de calor. Seu peito acusou o golpe e ela curvou-se sobre a cômoda. O pranto comovido chacoalhou seu tronco de soluços. Sentia-O muito próximo. Ele continuou.

– Eu te amo de todas as maneiras que é possível amar, na terra e no céu. Eu te amo no espírito. Eu te amo no corpo. Eu te amo no desejo. Eu te amo no sexo. Porque o amor fala infinitas linguagens e eu estou em tudo.

Desobrigada do pecado, ela enfim reconheceu, como se fosse – e era – a primeira vez:

– Eu te amo tanto.

– No dia e na noite, pensa em mim. Enquanto respirares, pensa em mim. Na hora em que partires desta vida, pensa em mim. Ao oferecer teu trabalho ao mundo, pensa em mim. Quando cuidares do teu filho, pensa em mim. Se te enamorares, pensa em mim. Quando fizeres amor, pensa em mim. Recebe com alegria a jóia que talhei para ti, porque te amo. E eu estarei contigo. Vai, e não temas mais teus sentimentos.

Então ela fechou os olhos, embevecida, e na tela do verso de suas pálpebras assistiu a uma conta cor-de-rosa gotejar em seu coração, por ele se expandindo como tinta em aquarela, e compreendeu que se tratava de uma concepção.

Por obra Daquele que tantas vezes resgatara o feminino da indignidade, das privações, da humilhação, da opressão, também ela se tornara mais uma entre as redimidas, livre para sempre das mentiras que o medo conta pela boca humana.

Agora era uma mulher.

Onides Bonaccorsi Queiroz