Verbo de ligação


Dom
21/05/2009, 00:18
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É bonito de ver: um dia a criança enxerga o violão. Pega, brinca, apalpa, dedilha. Vê-se que tem empatia pelo objeto, gosta de explorá-lo, de conhecê-lo e aprende com uma facilidade tal que supera o padrão comum. Logo está tocando música. E aí a gente diz: tem o dom!
É que dom é presente. Vocação inata. Um canal por onde flui a perfeição no ser humano, ora como regato, ora feito imenso rio. Pequeno ou grande, não importa, o dom sinaliza onde nós e Deus já somos um.
Por isso é tão formidável atentar para a naturalidade com que certas pessoas apresentam sua gema ao mundo. Ali o ser expressa o dom com tanta intimidade, que até dá a impressão que imitá-lo seria tarefa muito simples.
Em outros casos, a habilidade existe, mas está menos evidente, o que significa que precisará de mais tempo para se manifestar. E há também os nossos dons inconscientes, os “talentos enterrados”, como denominam algumas tradições nativas norte-americanas.
Essa categoria muitas vezes se confunde com aquelas situações em que o dom é como noz dentro de uma casca rígida. A pessoa está encarcerada em tão profunda identificação com o sofrimento, que apenas mais pressão consegue libertá-la. E aí, após longo inverno existencial, ou circunstâncias de crise extrema, como perdas, acidentes ou doenças graves, finalmente o sujeito se abre e dá à luz seu talento.
De qualquer modo, é certo que o ser humano sabe muito pouco de si, dez por cento, afirmam as hipóteses mais otimistas, imagine o que há para ser desvendado! A bordo do tempo, estamos, portanto, em plena viagem de descoberta.
Ao longo da caminhada, quanto mais imediata e calorosamente é acolhido um dote humano, mais seu portador se sente à vontade para exercê-lo. Com autorização e incentivo, o indivíduo pode desenvolver suas qualidades com serenidade e alegria.
Porque para expressar o dom, é preciso gostar de si. Para ser capaz de, gentilmente, oferecer-se a chance de experimentar e, confiantemente, correr o risco de se expor.
Ao que todos os entraves iniciais são largamente recompensados, porque, a seguir, o exercício do dom causa prazer. É quando o sujeito observa a si mesmo e constata: eu funciono, logo, tenho valor, logo, sou digno de me amar e de ser amado. Tal verificação atribui significado para sua vida e lhe confere um sentimento de pertinência, de dignidade interior e de integração ao mundo. Esse momento é um divisor de águas, um emancipador.
Porque o foco da atenção não está mais nas outras pessoas, nos fatos, na exterioridade. A satisfação agora mora dentro. Viver plenamente o dom é apaixonar-se por si, porque é enxergar a beleza do próprio espírito e compreender que a virtude habita em nós.
Há mais: o dom é transbordante. Não apenas o portador é agraciado pelos seus benefícios, mas também seus semelhantes. Os grandes líderes, os grandes artistas, os grandes cientistas, com seus talentos a serviço da humanidade, deixaram marcas positivas na História.
Mas os dons florescem, também e antes de tudo, na singeleza do cotidiano anônimo: na mãe dedicada, no amigo leal, no pedreiro caprichoso, no educador responsável, no sacerdote compassivo, no profissional da saúde criterioso e em tantos outros.
Além disso, verifica-se com frequência, por exemplo, que um advogado inescrupuloso pode ser um pai carinhoso. Que uma administradora tirânica pode ser uma excepcional cozinheira. E que um esquizofrênico pode ser um pesquisador notável. Felizmente, a misericórdia divina não está sujeita à tacanhez dos nossos preconceitos.
Em sua generosidade, essa mesma força premia, automática e proporcionalmente, os dotados em sua atitude de entrega, pois é da natureza do dom que quanto mais seja compartilhado, mais gratifique o doador, mais se potencialize e de mais encantadoras cores se vista. Não há limites para a expansão do dom. Em suas manifestações, não raro, surpreende até mesmo seu portador. Assim ditoso, o dom auxilia, perfuma e cura.
Mas o ciclo inverso também se apresenta. Quem tem atributo, tem responsabilidade. Não é porque uma pessoa domina determinada habilidade, que dela pode fazer o que lhe convier. O dom tem dono. E o dono não é o dotado, mas O que concede o dom. De maneira que quem quer controlar o dom, por absoluta incompetência, fatalmente irá desvitalizá-lo e sufocá-lo.
Que o dom é pássaro. Ama a liberdade e quer conquistar o céu. Deixar de vivê-lo ou partilhá-lo é acomodação, não ousar mover-se para além do minúsculo ambiente conhecido. É egoísmo e pobreza. De mãos e coração fechados, não se dá nada – nem se recebe.
E também quem despreza o seu dom corre o risco de ser destituído dele. Pois tudo o que não é utilizado, é esquecido e desaparece da nossa consciência, é desse modo: enterrado.
Já o acanhamento na prática do dom é vaidade. O que o tímido esconde atrás da máscara de modéstia é seu orgulho. E se eu fracassar? O que os outros vão pensar? Fica o vivente à mercê da manipulação alheia, que tanto se faz pela língua.
Ah, falam. Se o outro que identifica meus predicados não tem suficiente ciência dos seus próprios, isto lhe ocasiona humilhação, desconforto e raiva, ou seja, inveja. Daí a importância de que todos exercitem o autoconhecimento e reconheçam que cada um tem especial valor. Porque não há dois dons iguais, já que um dos incontáveis dons da criação é a irrestrita originalidade na composição do grande mosaico da existência.
Ademais, se por um lado o dom exige ousadia, por outro demanda humildade. Afinal, neste mundo, ninguém tem tudo. Cada qual com suas preciosidades, nenhum ser humano é superior a outro e mesmo um mestre não pode se esquecer que nunca deixa de ser aprendiz, porque sempre há algo novo para se tornar conhecido.
Sim, o dom pede dedicação. O dom pede concentração. Às vezes, paciência. O dom pede coragem. O dom pede discernimento no seu uso. O dom pede desprendimento sobre seus frutos.
A marcha da excelência é um exercício ao mesmo tempo vigoroso e sutil de equilíbrio! Mas compensador, pois a retidão no conduzir-se transforma o dom em legítimo poder.
E, quando a consciência está presente, eis a fortuna. Os dons se tornam uma celebração dos indivíduos e da coletividade, uma exuberante ciranda onde a união nos provê de tudo o que é necessário.
Dessa forma, o dom, a admissão deste, a sua prática e a gratidão compõem um círculo regenerador no episódio humano.
E por que é assim? Porque o dom pertence a um jogo maior, chamado amor. E, por isso, o dom é todo dádiva, mas também é mistério.

Onides Bonaccorsi Queiroz


25 Comentários so far
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Querida Onides, parabéns!
Que iniciativa legal a de publicar seu ensaio.
Achei maravilhoso o texto, sem maniqueismos, acolhedor das diferenças, incentivador da realização de essências, conscientizador de nossa condição humana.
Onides, que desabrochar gostoso sinto em você!
Lembrei-me agora de uma amiga que escreveu,
“O que não possuo, não é inexistente, faz presença pelo desejo. Ainda que eu não encontre o leme, não quero me perder de mim!”.
Suas palavras coincidem com o momento em que estou vivendo, onde preciso deixar viver as aspirações mais íntimas de minha alma – suas palavras me incentivam e me dão chão!

Parabéns,

Um beijo carinhoso,

do amigo,

Douglas

Comentário por Douglas Balila

Querido Douglas,
Seja muito bem-vindo!
Até breve, Onides.

Comentário por onidesqueiroz

Onides,
Que o o seu talento em traduzir pensamentos em palavras possa ajudar a todos que te visitarem. Seu texto nos faz refletir e reconhecer nossos dons. Parabéns. Beijo, Maria Fernanda

Comentário por maria fernanda

Nanda,
Que bom receber nesta casa quem sempre me acolhe com carinho na sua própria.
Obrigada por tudo. Onides.

Comentário por onidesqueiroz

Excelente! Deus é atividade, e nos dá o dom da cri-atividade, é só re-criar…

Comentário por terezina meirelles

Terezinaquesemprecoopera,
Acho que já começou aquele nosso papo sobre literatura…
Podemos continuá-lo em Piedade, Inhayba ou aqui mesmo! Beijos, Onides.

Comentário por onidesqueiroz

Oi Onides;
É verdade,estamos conversando já, mas em qualquer lugar será um enorme prazer conversarmos.
Muito legal ter esse espaço, agora é abrir as asas da imaginação, ou tirar do baú tantas maravilhas guardadas.

Terezinasemprecoopera manda bjos para Onidessempregentil ( ficou parecendo palavra da nova ortografia, he, he)

Comentário por terezina meirelles

Parabens Onides
Nunca tinha lido nada escrito por você e agora fiquei com gosto de quero mais.
Espero que você publique logo outros textos
Saudades
Nilu

Comentário por Nilu Strang

Oi, Nilu! Que bom que você veio!
Pode vir outras vezes que teremos outros petiscos… Beijo, Onides.

Comentário por onidesqueiroz

Querida irmãzinha!

certamente os os seus dons estão brotando linda e plenamente à luz deste Maio tão insolarado!

muito lindo!pra dizer o mínimo!

parabéns!

beijão

Eduardo Datcha Tenucci

Comentário por Eduardo Tenucci

Em se tratando de dom, meu queridíssimo irmão, certamente você sempre me inspirou, tão íntimo das cordas e das notas. Lembra quando eu te pedi, há alguns anos, lá no Acre, “toca alguma coisa pra mim? Nunca te ouvi tocar…” E você sacou Beatles, lindamente: “Here comes the sun…” É, querido, o Sol tá chegando! Obrigada pelo carinho, Onides.

Comentário por onidesqueiroz

Onides, o seu maravilhoso dom sempre mereceu ser mais compartilhado.
Parabéns pelo Blog!
Grande beijo, Maneco.

Comentário por Manoel S. de Queiroz Neto

Eu sou é muito sortuda de ter um mano Manoel, Mano e Maneco, sempre por perto nas horas certas. Obrigada.

Comentário por onidesqueiroz

Nossa, querida, que maravilha!
Obrigada.

Amor sempre

Thais

Comentário por thais

Thais, minha fofa, pelo menos aqui é mais fácil de chegar… Beijos.

Comentário por onidesqueiroz

Querida Onides!
Que o seu divino dharma sirva de inspiração p/ muitos!
Tudo se abre quando estamos a serviço da verdade…
beijos
Camila

Comentário por Camila Simon Tenucci

Amém, Camila, amém! Seja bem-vinda! Beijo e saudades.

Comentário por onidesqueiroz

Querida prima!!!
Adorei a forma como vc tratou, detalhou, despiu e desfiou uma palavra(Tema) que as vezes passa desapercebida. Mas vc valorizou o que ja “Existia”, acordou a sua “Tia” e deu um choque no “turista da Turquia”…

Parabéns

beijo do primo

Antonello

Comentário por Antonello

Que bom que você gostou, primo! E vou meditar sobre o tal “turista da Turquia”… (Esse Antonello tem cada uma!) Depois você faz um desenho pra eu entender melhor? Beijos.

Comentário por onidesqueiroz

“Os dons se tornam uma celebração dos indivíduos e da coletividade, uma exuberante ciranda…”

Minha Tão Querida Irmã,

bom seria, neste momento, que formássemos uma grande e exuberante ciranda para a infinita celebração do dom maravilhoso que Deus lhe deu e que, já não era sem tempo, e felizmente, decide compartilhar conosco. Se tivesse eu que escolher um único adjetivo para qualificar o que escreveu (o que seria uma impossibilidade entre tantos que poderia aqui citar) seria esse: brilhante!!!

Um Grande Abraço!
Muita Paz (essa com a qual nos brinda sempre)!
Toda Luz (essa que você já tem de sobra)!

Em tempo: a propósito, o Livro de Ouro de fãs já está aberto?

nAtAn

Comentário por nAtAn

Querido Natan,
Um dia alguém me disse, e eu acreditei, que tudo o que a gente enxerga no outro é o que está dentro de nós. Obrigada pela mensagem carinhosa e por fazer parte do meu círculo de queridos irmãos-amigos. Beijos.

Comentário por onidesqueiroz

Querida maninha, obrigada por compartilhar essas pérolas conosco.O nosso Dom é com certeza a presença de Deus na Terra.Namastê!

Comentário por Regina Algarra

Obrigada pela visita, querida, e também pelo incentivo. Seja sempre bem-vinda! Beijo da mana.

Comentário por onidesqueiroz

Onides, Adorei saber que a irmã da Adri escreve muitas coisas que já vivemos, já sentimos, já sofremos, enfim, muitos sentimentos que todos nós, seres humanos, vamos experimentar um dia. Desejo que Deus continue a abençoá-la com o seu talento. Abraço. Cristina

Comentário por Cristina

Seja sempre bem-vinda, Cristina!
Um abraço, Onides.

Comentário por onidesqueiroz




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