É bonito de ver: um dia a criança enxerga o violão. Pega, brinca, apalpa, dedilha. Vê-se que tem empatia pelo objeto, gosta de explorá-lo, de conhecê-lo e aprende com uma facilidade tal que supera o padrão comum. Logo está tocando música. E aí a gente diz: tem o dom!
É que dom é presente. Vocação inata. Um canal por onde flui a perfeição no ser humano, ora como regato, ora feito imenso rio. Pequeno ou grande, não importa, o dom sinaliza onde nós e Deus já somos um.
Por isso é tão formidável atentar para a naturalidade com que certas pessoas apresentam sua gema ao mundo. Ali o ser expressa o dom com tanta intimidade, que até dá a impressão que imitá-lo seria tarefa muito simples.
Em outros casos, a habilidade existe, mas está menos evidente, o que significa que precisará de mais tempo para se manifestar. E há também os nossos dons inconscientes, os “talentos enterrados”, como denominam algumas tradições nativas norte-americanas.
Essa categoria muitas vezes se confunde com aquelas situações em que o dom é como noz dentro de uma casca rígida. A pessoa está encarcerada em tão profunda identificação com o sofrimento, que apenas mais pressão consegue libertá-la. E aí, após longo inverno existencial, ou circunstâncias de crise extrema, como perdas, acidentes ou doenças graves, finalmente o sujeito se abre e dá à luz seu talento.
De qualquer modo, é certo que o ser humano sabe muito pouco de si, dez por cento, afirmam as hipóteses mais otimistas, imagine o que há para ser desvendado! A bordo do tempo, estamos, portanto, em plena viagem de descoberta.
Ao longo da caminhada, quanto mais imediata e calorosamente é acolhido um dote humano, mais seu portador se sente à vontade para exercê-lo. Com autorização e incentivo, o indivíduo pode desenvolver suas qualidades com serenidade e alegria.
Porque para expressar o dom, é preciso gostar de si. Para ser capaz de, gentilmente, oferecer-se a chance de experimentar e, confiantemente, correr o risco de se expor.
Ao que todos os entraves iniciais são largamente recompensados, porque, a seguir, o exercício do dom causa prazer. É quando o sujeito observa a si mesmo e constata: eu funciono, logo, tenho valor, logo, sou digno de me amar e de ser amado. Tal verificação atribui significado para sua vida e lhe confere um sentimento de pertinência, de dignidade interior e de integração ao mundo. Esse momento é um divisor de águas, um emancipador.
Porque o foco da atenção não está mais nas outras pessoas, nos fatos, na exterioridade. A satisfação agora mora dentro. Viver plenamente o dom é apaixonar-se por si, porque é enxergar a beleza do próprio espírito e compreender que a virtude habita em nós.
Há mais: o dom é transbordante. Não apenas o portador é agraciado pelos seus benefícios, mas também seus semelhantes. Os grandes líderes, os grandes artistas, os grandes cientistas, com seus talentos a serviço da humanidade, deixaram marcas positivas na História.
Mas os dons florescem, também e antes de tudo, na singeleza do cotidiano anônimo: na mãe dedicada, no amigo leal, no pedreiro caprichoso, no educador responsável, no sacerdote compassivo, no profissional da saúde criterioso e em tantos outros.
Além disso, verifica-se com frequência, por exemplo, que um advogado inescrupuloso pode ser um pai carinhoso. Que uma administradora tirânica pode ser uma excepcional cozinheira. E que um esquizofrênico pode ser um pesquisador notável. Felizmente, a misericórdia divina não está sujeita à tacanhez dos nossos preconceitos.
Em sua generosidade, essa mesma força premia, automática e proporcionalmente, os dotados em sua atitude de entrega, pois é da natureza do dom que quanto mais seja compartilhado, mais gratifique o doador, mais se potencialize e de mais encantadoras cores se vista. Não há limites para a expansão do dom. Em suas manifestações, não raro, surpreende até mesmo seu portador. Assim ditoso, o dom auxilia, perfuma e cura.
Mas o ciclo inverso também se apresenta. Quem tem atributo, tem responsabilidade. Não é porque uma pessoa domina determinada habilidade, que dela pode fazer o que lhe convier. O dom tem dono. E o dono não é o dotado, mas O que concede o dom. De maneira que quem quer controlar o dom, por absoluta incompetência, fatalmente irá desvitalizá-lo e sufocá-lo.
Que o dom é pássaro. Ama a liberdade e quer conquistar o céu. Deixar de vivê-lo ou partilhá-lo é acomodação, não ousar mover-se para além do minúsculo ambiente conhecido. É egoísmo e pobreza. De mãos e coração fechados, não se dá nada – nem se recebe.
E também quem despreza o seu dom corre o risco de ser destituído dele. Pois tudo o que não é utilizado, é esquecido e desaparece da nossa consciência, é desse modo: enterrado.
Já o acanhamento na prática do dom é vaidade. O que o tímido esconde atrás da máscara de modéstia é seu orgulho. E se eu fracassar? O que os outros vão pensar? Fica o vivente à mercê da manipulação alheia, que tanto se faz pela língua.
Ah, falam. Se o outro que identifica meus predicados não tem suficiente ciência dos seus próprios, isto lhe ocasiona humilhação, desconforto e raiva, ou seja, inveja. Daí a importância de que todos exercitem o autoconhecimento e reconheçam que cada um tem especial valor. Porque não há dois dons iguais, já que um dos incontáveis dons da criação é a irrestrita originalidade na composição do grande mosaico da existência.
Ademais, se por um lado o dom exige ousadia, por outro demanda humildade. Afinal, neste mundo, ninguém tem tudo. Cada qual com suas preciosidades, nenhum ser humano é superior a outro e mesmo um mestre não pode se esquecer que nunca deixa de ser aprendiz, porque sempre há algo novo para se tornar conhecido.
Sim, o dom pede dedicação. O dom pede concentração. Às vezes, paciência. O dom pede coragem. O dom pede discernimento no seu uso. O dom pede desprendimento sobre seus frutos.
A marcha da excelência é um exercício ao mesmo tempo vigoroso e sutil de equilíbrio! Mas compensador, pois a retidão no conduzir-se transforma o dom em legítimo poder.
E, quando a consciência está presente, eis a fortuna. Os dons se tornam uma celebração dos indivíduos e da coletividade, uma exuberante ciranda onde a união nos provê de tudo o que é necessário.
Dessa forma, o dom, a admissão deste, a sua prática e a gratidão compõem um círculo regenerador no episódio humano.
E por que é assim? Porque o dom pertence a um jogo maior, chamado amor. E, por isso, o dom é todo dádiva, mas também é mistério.
Onides Bonaccorsi Queiroz
25 Comentários so far
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Querida Onides, parabéns!
Que iniciativa legal a de publicar seu ensaio.
Achei maravilhoso o texto, sem maniqueismos, acolhedor das diferenças, incentivador da realização de essências, conscientizador de nossa condição humana.
Onides, que desabrochar gostoso sinto em você!
Lembrei-me agora de uma amiga que escreveu,
“O que não possuo, não é inexistente, faz presença pelo desejo. Ainda que eu não encontre o leme, não quero me perder de mim!”.
Suas palavras coincidem com o momento em que estou vivendo, onde preciso deixar viver as aspirações mais íntimas de minha alma – suas palavras me incentivam e me dão chão!
Parabéns,
Um beijo carinhoso,
do amigo,
Douglas
Comentário por Douglas Balila 23/05/2009 @ 17:54Querido Douglas,
Comentário por onidesqueiroz 26/05/2009 @ 16:38Seja muito bem-vindo!
Até breve, Onides.
Onides,
Comentário por maria fernanda 24/05/2009 @ 14:34Que o o seu talento em traduzir pensamentos em palavras possa ajudar a todos que te visitarem. Seu texto nos faz refletir e reconhecer nossos dons. Parabéns. Beijo, Maria Fernanda
Nanda,
Comentário por onidesqueiroz 26/05/2009 @ 16:39Que bom receber nesta casa quem sempre me acolhe com carinho na sua própria.
Obrigada por tudo. Onides.
Excelente! Deus é atividade, e nos dá o dom da cri-atividade, é só re-criar…
Comentário por terezina meirelles 25/05/2009 @ 11:10Terezinaquesemprecoopera,
Comentário por onidesqueiroz 26/05/2009 @ 16:41Acho que já começou aquele nosso papo sobre literatura…
Podemos continuá-lo em Piedade, Inhayba ou aqui mesmo! Beijos, Onides.
Oi Onides;
É verdade,estamos conversando já, mas em qualquer lugar será um enorme prazer conversarmos.
Muito legal ter esse espaço, agora é abrir as asas da imaginação, ou tirar do baú tantas maravilhas guardadas.
Terezinasemprecoopera manda bjos para Onidessempregentil ( ficou parecendo palavra da nova ortografia, he, he)
Comentário por terezina meirelles 27/05/2009 @ 23:00Parabens Onides
Comentário por Nilu Strang 25/05/2009 @ 13:16Nunca tinha lido nada escrito por você e agora fiquei com gosto de quero mais.
Espero que você publique logo outros textos
Saudades
Nilu
Oi, Nilu! Que bom que você veio!
Comentário por onidesqueiroz 26/05/2009 @ 16:43Pode vir outras vezes que teremos outros petiscos… Beijo, Onides.
Querida irmãzinha!
certamente os os seus dons estão brotando linda e plenamente à luz deste Maio tão insolarado!
muito lindo!pra dizer o mínimo!
parabéns!
beijão
Eduardo Datcha Tenucci
Comentário por Eduardo Tenucci 25/05/2009 @ 14:12Em se tratando de dom, meu queridíssimo irmão, certamente você sempre me inspirou, tão íntimo das cordas e das notas. Lembra quando eu te pedi, há alguns anos, lá no Acre, “toca alguma coisa pra mim? Nunca te ouvi tocar…” E você sacou Beatles, lindamente: “Here comes the sun…” É, querido, o Sol tá chegando! Obrigada pelo carinho, Onides.
Comentário por onidesqueiroz 26/05/2009 @ 16:49Onides, o seu maravilhoso dom sempre mereceu ser mais compartilhado.
Comentário por Manoel S. de Queiroz Neto 25/05/2009 @ 15:18Parabéns pelo Blog!
Grande beijo, Maneco.
Eu sou é muito sortuda de ter um mano Manoel, Mano e Maneco, sempre por perto nas horas certas. Obrigada.
Comentário por onidesqueiroz 26/05/2009 @ 16:53Nossa, querida, que maravilha!
Obrigada.
Amor sempre
Thais
Comentário por thais 25/05/2009 @ 21:03Thais, minha fofa, pelo menos aqui é mais fácil de chegar… Beijos.
Comentário por onidesqueiroz 26/05/2009 @ 16:55Querida Onides!
Comentário por Camila Simon Tenucci 27/05/2009 @ 13:24Que o seu divino dharma sirva de inspiração p/ muitos!
Tudo se abre quando estamos a serviço da verdade…
beijos
Camila
Amém, Camila, amém! Seja bem-vinda! Beijo e saudades.
Comentário por onidesqueiroz 27/05/2009 @ 15:07Querida prima!!!
Adorei a forma como vc tratou, detalhou, despiu e desfiou uma palavra(Tema) que as vezes passa desapercebida. Mas vc valorizou o que ja “Existia”, acordou a sua “Tia” e deu um choque no “turista da Turquia”…
Parabéns
beijo do primo
Antonello
Comentário por Antonello 27/05/2009 @ 23:05Que bom que você gostou, primo! E vou meditar sobre o tal “turista da Turquia”… (Esse Antonello tem cada uma!) Depois você faz um desenho pra eu entender melhor? Beijos.
Comentário por onidesqueiroz 28/05/2009 @ 15:24“Os dons se tornam uma celebração dos indivíduos e da coletividade, uma exuberante ciranda…”
Minha Tão Querida Irmã,
bom seria, neste momento, que formássemos uma grande e exuberante ciranda para a infinita celebração do dom maravilhoso que Deus lhe deu e que, já não era sem tempo, e felizmente, decide compartilhar conosco. Se tivesse eu que escolher um único adjetivo para qualificar o que escreveu (o que seria uma impossibilidade entre tantos que poderia aqui citar) seria esse: brilhante!!!
Um Grande Abraço!
Muita Paz (essa com a qual nos brinda sempre)!
Toda Luz (essa que você já tem de sobra)!
Em tempo: a propósito, o Livro de Ouro de fãs já está aberto?
nAtAn
Comentário por nAtAn 28/05/2009 @ 21:27Querido Natan,
Comentário por onidesqueiroz 29/05/2009 @ 15:05Um dia alguém me disse, e eu acreditei, que tudo o que a gente enxerga no outro é o que está dentro de nós. Obrigada pela mensagem carinhosa e por fazer parte do meu círculo de queridos irmãos-amigos. Beijos.
Querida maninha, obrigada por compartilhar essas pérolas conosco.O nosso Dom é com certeza a presença de Deus na Terra.Namastê!
Comentário por Regina Algarra 01/06/2009 @ 22:33Obrigada pela visita, querida, e também pelo incentivo. Seja sempre bem-vinda! Beijo da mana.
Comentário por onidesqueiroz 02/06/2009 @ 22:11Onides, Adorei saber que a irmã da Adri escreve muitas coisas que já vivemos, já sentimos, já sofremos, enfim, muitos sentimentos que todos nós, seres humanos, vamos experimentar um dia. Desejo que Deus continue a abençoá-la com o seu talento. Abraço. Cristina
Comentário por Cristina 16/07/2009 @ 01:31Seja sempre bem-vinda, Cristina!
Comentário por onidesqueiroz 23/07/2009 @ 22:36Um abraço, Onides.